Visualidades do folk - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Visualidades do folk

Maria Manuela Restivo

Percurso

08 Setembro 2023

O curioso mundo do movimento folclórico português
Diz-se com frequência que não se avaliam livros e discos pelas suas capas. No entanto, é precisamente esse exercício que, de certa forma, se pretende fazer neste texto. Mais concretamente, parte-se de uma breve reflexão suscitada pela análise de algumas capas de discos de música folclórica para abordar o universo mais vasto do movimento folclórico português. Explorar a profusa coleção de capas de discos de música folclórica da Fonoteca Municipal do Porto é entrar num universo sui generis. Aos olhos de hoje, época particularmente atenta às configurações visuais e imagéticas, salta à vista o pendor idealizado e romantizado da maior parte das capas. A sua composição tende a obedecer a uma padrão: um ou vários elementos do rancho, no seu melhor trajar, estão dispostos num espaço que consiste normalmente num lugar emblemático da região que o respetivo grupo representa. Jardins, igrejas, casas rurais ou monumentos locais são os espaços mais comuns (como as que vemos nas capas da Orquestra Típica Albicastrense e do Rancho Típico de Pombal).

O número de elementos representados vai variando; as pessoas, quando não estão a tocar e dançar ou simplesmente a posar para a fotografia, podem encenar certas “práticas tradicionais”, como a fiação ou a apanha do sargaço (como a capa do Grupo de Sargaceiros da Casa do Povo da Apúlia). Também há capas mais invulgares ou mesmo insólitas: dentro das primeiras, refiram-se as que são compostas por objetos da cultura material tradicional, como olarias ou têxteis, harmoniosamente organizados (ver a capa do Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio). Dentro das segundas, destaca-se por exemplo a do Rancho Folclórico da Correlhã, que retrata alguns elementos do rancho no que parece ser uma estrada nacional não identificável; ou ainda a do Grupo Folclórico de São Martinho da Gandra, onde todos aparecem de costas exceto o bebé.

Um olhar mais demorado, alinhado com alguma reflexão teórica mais recente, permite-nos avançar outras enunciações: há uma clara preferência pelos membros mais jovens e mais atraentes de cada grupo; é frequente a representação do amor heteronormativo, onde o elemento masculino seduz o feminino (como nas capas do Grupo Folclórico de Afife ou da Estúrdia dos Camponeses de Godinhaços); todas as pessoas envergam trajes tradicionais, mesmo em situações de representação de cenas rurais onde o traje nunca seria utilizado, dado tratar-se de vestuário para dias de festa e não de uso quotidiano (ver as capas do Grupo Folclórico de Lavradas ou do Grupo Folclórico das Lavradeiras de Escariz de S. Mamede). Ou seja: o mundo que ali vemos consiste numa idealização e estetização da vida rural, com pouca correspondência com uma suposta realidade ou autenticidade que muitos destes grupos reclamam alcançar. E não será precisamente a relação entre tradição e representação uma das questões subjacentes à própria existência dos ranchos folclóricos?

Os primeiros grupos folclóricos surgiram em finais do século XIX, no contexto mais amplo da valorização da cultura popular portuguesa. Não tendo a organização formal que iriam adquirir em décadas posteriores, constituíam-se já como grupos de pessoas que se juntavam para tocar e dançar alguns temas ditos tradicionais ou populares, envergando a indumentária “rural” da região que era suposto representarem.

É nesta altura que se inicia o que alguns autores denominam por folclorização: as práticas culturais são retiradas do quotidiano para passarem a ser representadas noutros espaços. Os objetos passam da vida quotidiana para o museu; as músicas e as danças, organicamente performadas em dias de festa, passam a constituir-se como repertórios de grupos folclóricos; as danças passam de danças sociais a danças teatrais, marcadas pela ideia de palco e pela separação entre quem dança e quem assiste. Ou seja, iniciam-se simultaneamente os processos de representação e preservação das práticas culturais tradicionais.

Ao longo das primeiras décadas do século XX, estes grupos folclóricos (mantenha-se esta designação algo genérica) foram-se multiplicando, aparecendo um pouco por todo o país. O repertório de cada grupo era essencialmente construído com base nas recolhas de músicas, danças e trajes que os folcloristas, etnógrafos ou entusiastas locais realizavam nas diferentes regiões (só mais tarde apareceria a figura do etnomusicólogo), recolhas essas efetuadas mais a partir de testemunhos orais do que de fontes arquivísticas. Relembre-se que o “povo”, e muitas das suas práticas culturais, não constituía, até aos séculos XVIII/XIX, alvo de atenção por parte da elite, a quem competia a construção e gestão dos arquivos. Tal significa que são raros os registos das músicas e danças populares antes do século XIX – não porque elas não existissem, dado que o povo sempre terá dançado, tocado e cantado, mas porque não eram “dignas” de serem registadas.

Durante o regime do Estado Novo, como anteriormente documentado, os grupos folclóricos foram incentivados pelo regime, já que representavam particularmente bem os princípios nacionalistas e regionalistas propagados, servindo ainda à construção cultural e turística da cultura popular. O controlo minucioso do Estado Novo, quando recorria a estes grupos, procurava assegurar que estes se mantivessem “autênticos” e “puros”, o que significava, segundo os parâmetros do regime, que cada grupo representasse as práticas rurais da sua respetiva região, tal como descritas, na ausência comum de fontes escritas, pelas pessoas mais idosas. Tal situação criou duas particularidades que iriam marcar a vida futura da maior parte dos ranchos folclóricos:

1. que se convencionasse localizar a “autenticidade” da vida rural no período entre 1890 e 1910, sendo que a maior parte dos grupos tem este período como referência;
2. que cada grupo deveria focar-se na sua região, sem se sobrepor às regiões vizinhas. Ora, se a primeira circunstância cria problemas no que diz respeito à fiabilidade da recolha – muitos grupos de criação mais recente não têm como saber como se vivia na sua região – a segunda obriga a que cada grupo se diferencie através do seu repertório, reclamando danças específicas que, se em tempos estavam divulgadas um pouco por todo o país, passaram a estar associadas a zonas específicas, como o vira no Minho ou o corridinho no Algarve. Se um grupo toca o “vira da nossa terra” o outro já não deve fazê-lo, mesmo que em tempos essas danças tivessem organicamente ocorrido em contexto de festas locais.

Apesar da corrente associação dos ranchos folclóricos com o Estado Novo, a passagem para o regime democrático não representou a sua extinção, pelo contrário: as décadas de 1980 e 1990 viram multiplicar-se os grupos folclóricos, muitos dos quais no estrangeiro. Segundo um depoimento recolhido para a escrita deste artigo, alguns ranchos folclóricos, no pós 25 de Abril, passaram a usar a denominação grupo etnográfico. Esta mudança foi, nalguns casos, acompanhada da entrada nos grupos de pessoas com formação superior, a par de uma maior preocupação com a pesquisa etnográfica, influenciada sobretudo pelas recolhas de Giacometti.

Curiosamente, a “supervisão” dos ranchos também não desapareceu com o fim do fascismo: a Federação do Folclore Português, criada em 1977, tem-se dedicado a avaliar a autenticidade dos grupos de acordo com os seus parâmetros sobre a tradição, situação que tem sido largamente contestada. Constituindo-se como a instituição nacional a quem compete “aprovar” os grupos, marcando uma distinção entre grupos federados e os que não o são, muitos preferem operar fora dos parâmetros da federação. Esta necessidade permanente de monitorização ou acompanhamento do trabalho dos ranchos é, de resto, demonstrativa da complexidade da temática da tradição. As tentativas constantes de agarrar a tradição – que vemos plasmadas nas capas dos discos – contrastam com a sua concetualização antropológica, que tende a reforçar a fluidez das práticas culturais. Poucos reconhecem que o conceito de tradição tem a mesma origem etimológica que a palavra traição, traditione, e que a sua riqueza pode residir precisamente no seu carácter idiossincrático, provisório. Como defendem as pessoas consultadas para escrever este artigo, os grupos folclóricos podem e devem ser o que quiserem – tradicionais, modernos, semi-tradicionais, neo-rurais, rurais-pop, etc.,– mas devem ser autocríticos nas formas como abordam as tradições que dizem representar.

Para além da vertente historiográfica dos ranchos folclóricos e das problemáticas sobre a tradição e a representação cultural que inevitavelmente estes grupos convocam, há ainda que sublinhar uma outra dimensão fundamental: de que os grupos se constroem com base no convívio, na partilha, na recreação. Não é à toa que muitos grupos se consolidaram enquanto associações recreativas, lembrando que recrear é divertir, folgar, entreter. De facto, talvez mais do que em nenhuma outra organização, os grupos folclóricos são espaços por excelência de convívio intergeracional, onde netos, filhos e avós podem partilhar o mesmo palco. São estas características que singularizam o movimento folclórico português: entre a tradição e a recreação, a preservação e o espetáculo, a aprendizagem e o convívio. Não é de admirar que, contra o vaticínio de alguns, existam tantos grupos em pleno século XXI. Talvez eles sejam reduto de um modo convivial que se perdeu noutros lugares, ao promoverem o canto e a dança em conjunto, na era onde até as danças são individualistas.

Longa vida aos ranchos folclóricos!

Este artigo só foi possível graças aos contributos de Alberto Rego, Alexandre Curopus, Ana Costa, Hermínio Fernandes, Gil Raro, Maria Isabel Alves e Mário Marques, que tiveram a amabilidade de conversar comigo e partilhar as suas perspectivas sobre o movimento folclórico e a música tradicional. Agradeço ainda ao Gil Raro, Hermínio Fernandes e Mário Marques pelas sugestões ao artigo.

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