Quem desenhou esta capa? - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Quem desenhou esta capa?

Isabel Duarte

Percurso

19 Novembro 2021

Como a curiosidade sobre uma capa de um álbum de GNR me levou a conhecer o trabalho da designer Fátima Rolo Duarte
Os trajetos de investigação são batidos seguindo pistas que às vezes não chegam a nada em concreto, mas que outras vezes dão lugar a revelações preciosas. A Errata, um projeto de investigação sobre a invisibilidade das mulheres na história do design que resultou numa exposição no Gabinete Gráfico do Museu da Cidade do Porto no verão de 2021 e que trouxe a público o trabalho de 17 mulheres no design gráfico português, não foi diferente. Sem saber o que procurava, e seguindo apenas uma intuição, deu-se uma das maiores revelações no percurso de investigação da Errata: a exploração do trabalho da designer Fátima Rolo Duarte.

Cheguei ao trabalho desta designer a partir do álbum Psicopátria da banda portuense GNR. O arranjo gráfico desta capa intrigava-me. A fotografia a preto e branco mostra uma cena portuense já muito conhecida, ainda presente hoje e imortalizada em Aniki Bobó, de uma criança que voa de braços abertos enquanto se atira ao rio Douro para um mergulho. Na água estão outras crianças que já tiveram a audácia de mergulhar e ao fundo a monumental ponte D. Luís I em todo o seu esplendor, deixando o espetador sem dúvidas de que se trata de uma banda do Porto. Atiradas para o canto do álbum e à direita da fotografia, com imponência, vemos as letras GNR que de forma arrojada e orgulhosa preenchem a altura total da capa, numa tipografia densa e sólida. As crianças estão na orla do rio e as letras estão cortadas pelo borda da capa. O que sobrou das suas pernas foi atirado para o outro canto do álbum formando uma moldura de tipografia ao redor da imagem. Entre o N e o R, lê-se o nome do álbum, Psicopátria, escrito a cor-de-rosa numa fonte muito mais pequena, mais elegante e serifada. O posicionamento ousado do nome da banda, a tensão entre a tipografia avultada que forma GNR e a tipografia cuidada do nome do álbum, suscitou a minha curiosidade relativamente ao design da capa, mas a ficha técnica referia apenas o crédito à fotografia de Beatriz Ferreira.

Sabendo que dois outros discos dos GNR tinham sido desenhados por mulheres, o recente Caixa Negra por Inês Nepomuceno e Defeitos Especiais, de 1984, com capa e fotografia de Fernanda Gonçalves, o crédito de fotografia do Psicopátria atribuído a Beatriz Ferreira deixou-me curiosa. Questionei-me se Beatriz Ferreira, tal como Fernanda Gonçalves não seria também a responsável pelo arranjo gráfico, mas depois de várias vias de investigação, confirmei que uma outra mulher tinha desenhado a capa: Fátima Rolo Duarte.

A forma caótica como cheguei a esta designer foi possivelmente um prenúncio do contributo que o seu trabalho teria para a investigação da Errata, porque embora o seu nome possa não constar nos livros sobre história do design gráfico, o seu trabalho existe na maioria das casas portuguesas e é revelador de um mecanismo de opressão ainda hoje presente na construção da história do design, a exclusão dos designers cujo trabalho não segue uma linha autoral.

Fátima nasceu em Lisboa em 1958, numa família de jornalistas. Em 1983, depois de uma formação em artes gráficas, começou a trabalhar como designer na editora musical Emi-Valentim de Carvalho. Nesta posição de designer interna foi a responsável gráfica por centenas de capas de discos de variados artistas musicais portugueses. Muitas das capas que desenhou como Psicopátria dos GNR, Regresso do Marco Paulo, Um Destes Dias dos Trovante, Mundo de Aventuras dos Ban, Vou-me Embora do Vitorino ou O Melhor de Amália de Amália Rodrigues, estão presentes nas casas de muitos portugueses, são icónicas no panorama musical português e contribuíram para a identidade visual de artistas que fazem parte do imaginário musical nacional.

Fátima decidiu que pela variedade de estilos musicais dos autores que lhe passavam pelas mãos cada capa devia ser abordada de forma diferente. "Assim, de Marco Paulo, passando pelo Vitorino, Amália, GNR e Toy aprendi [...] adaptei-me às circunstâncias". Esta postura não segue as linhas autorais que a história do design tende a procurar no trabalho de um designer. Como designer interna, Fátima Rolo Duarte navegou águas difíceis, conciliando as necessidades e desejos da editora e dos músicos, assim como a sua própria sensibilidade. "Parecia-me sempre curioso que raramente se referisse o trabalho gráfico nas críticas musicais e outras. Havia (ainda há?) uma notável ignorância gráfica, mesmo dentro do meio". Terá sido por isso que esta designer, que trabalhou em capas com tanta importância cultural, não tenha nome na praça? Talvez, mas importa mais agora restituir este nome à história do design gráfico e valorizar o esforço camaleónico que Fátima, porque o seu trabalho assim o pedia, fez e que não por isso merecesse menos o reconhecimento pelos seus pares e pela indústria musical.

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