Entrevista com Alberto Rego - Fonoteca Municipal do Porto

Fonoteca Municipal do PortoFMP

Entrevista com Alberto Rego

 Maria Manuela Restivo

Entrevista

21 Dezembro 2023

 "Pensar na autenticidade a 100% é fazer de nós peças museológicas. E um grupo de folclore faz atividades para um público, que tem de cativar, se não, deixa de lado uma das suas obrigações que é a divulgação."
Alberto Rego participou na fundação do Grupo Etnográfico da Areosa, em 1966, ocupando a função de Presidente da Direção desde 1976 até à presente data. Simultaneamente, preside à Associação dos Grupos Folclóricos do Alto Minho desde 1994. É um dos diretores da comissão europeia da FIDAF, é membro da direção da Associação VianaFestas, desde 2002, tem sido membro do júri em vários festivais internacionais na Europa, América do Sul e Ásia, foi diretor do Festival de Folclore Internacional Alto Minho, de 1997 a 2016, e foi vice-presidente do CIOFF Portugal de 2011 a 2016 o que o torna numa figura particularmente conhecedora do universo dos grupos folclóricos portugueses.

Como se deu a sua ligação com o universo dos grupos folclóricos?

Eu ajudei a fundar o Grupo Etnográfico da Areosa em 1966. Era um jovem com 17 anos e não tinha consciência nenhuma do que era a tradição popular, nem do que havia em Areosa, mas, em conjunto com outros jovens da freguesia, assistimos, em Afife, a um espetáculo apresentado por Pedro Homem de Mello e começamos a interessar-nos por isso. Foi o começo. Na altura havia uma guerra a decorrer e os rapazes da minha geração já sabiam que lá iríamos parar. Éramos jovens e tínhamos consciência de que tínhamos que estar ocupados para não pensar muito nisso. Ou emigrávamos clandestinamente, ou íamos para a pesca do bacalhau e tínhamos que ficar lá 7 anos, ou íamos para a guerra, no meu caso, para Angola. Os afazeres com a fundação do Grupo ajudaram-nos a ultrapassar tudo isso.

Mas já havia antecedentes de vários grupos nesta região.

Sim. Carreço, Meadela, Sta. Marta já tinham créditos firmados. Em 1919, Abel Viana criou o primeiro grupo informal aqui na terra e chamou-lhe Rancho das Lavradeiras de Areosa, mas só depois, em 1966, é que surge o Grupo Etnográfico da Areosa.

Esse primeiro grupo surgiu porque Abel Viana foi convidado para a organizar, em 1919, o Certame Regional de Danças e Descantes Populares (a primeira Festa do Traje), dinamizando, assim, mais um número das Festas da Agonia e conseguiu organizar esse Rancho de Lavradeiras. Ele e a família tinham bastante influência localmente. Eles organizavam os bailaricos de eira e obrigavam a dançar não só os “Foxtrots” ou as “Polcas”, que se dançavam na altura, mas também as danças tradicionais: a Rosinha, a Tirana, o Pai do Ladrão. Abel Viana deixou-nos histórias engraçadas, como por exemplo: alguns dos tocadores eram trolhas e se davam com o martelo nos dedos, depois não conseguiam tocar direito.

Há muita gente que pensa que os ranchos folclóricos são sobretudo uma invenção do Estado Novo, mas cada vez aparecem mais investigadores a questionar isso.

E ainda bem! Só não entendo como é que aparecem pessoas, até com formação superior, a defender isso. Ramalho Ortigão, Cláudio Basto, Abel Viana... todos esses e tantos outros vêm demonstrar que o Salazar ainda não tinha sido gerado e já estavam a aparecer grupos e manifestações folclóricas.

Salazar, ou melhor, o Estado Novo, tentou moldar algumas coisas, tal como fez anteriormente a monarquia ou, até, o regime atual. No entanto, tenho que admitir que havia dentro dos ministérios gente muito inteligente, e o António Ferro foi um desses. Ele conhecia e sabia o que havia nos vários pontos do país e o que valia a pena explorar em termos da imagem que queria fazer passar sobre o país.

Só há bem pouco tempo é que soube que as primeiras marchas de Lisboa foram feitas com Trajes à Vianesa. As coristas de Lisboa também se vestiam com o traje de Viana, redesenhado para o Teatro de Revista. Mas ainda hoje esse tipo de coisas acontece, vejam a publicidade em Viana do Castelo, os corações, etc. Todos os regimes têm tendência a fazer isso, temos de o encarar com naturalidade. Temos é que perceber que, localmente, as pessoas conhecem a sua história e não se deixam influenciar, como se vê por exemplo no facto de várias freguesias de manterem fiéis ao seu legado: em Afife há um padrão, em Carreço outro padrão, em Areosa outro, isso é que é interessante perceber.

Como é que os diferentes padrões regionais se desenvolveram?

Não é fácil percebermos isso, mas é fácil percebermos que as pessoas gostavam de ser diferentes. Já ouviu a expressão "não te alhapes que a festa é noxa?” Quer dizer, não te sentes que a festa é nossa. As mulheres da Areosa que iam a Carreço, à Sra. da Graça, sentavam-se no adro, e as de Carreço diziam essa frase. Elas queriam marcar posição perante o território, queriam que as famílias mantivessem o seu legado intacto. O que é importante é percebermos que o traje foi evoluindo. Nasceu acastanhado, porque era proveniente de estopa/linho e lã, e convinha que a lã fosse de ovelha castanha, porque não havia dinheiro para comprar sabão, e se fosse branca notava-se mais a sujidade. É assim que aparece a fraldilha. Depois com o passar dos anos o litoral deu-lhe cor, deu-lhe vida, o que acontece com Afife, Carreço, Areosa, etc. Havia o culto do trajar, as raparigas gostavam de ter a sua moda, de se diferenciar das restantes. Mas isso ainda acontece agora também.

E em relação à música e à dança?

A mesma coisa, foram sempre evoluindo. Das mais elaboradas às mais simples, o povo foi aprendendo com quem ia ensinando. A nobreza muitas vezes ditava as leis e o povo ia adaptando. Com os instrumentos passa-se a mesma coisa. Mas no caso dos instrumentos há, infelizmente, a história da concertina, por exemplo. Foi adotada por causa da imigração da época. As pessoas que emigraram trouxeram a concertina quando voltaram. E depois quem a vendia, vendia as tonalidades altas. Por isso é que vemos alguns ranchos que em vez de cantarem, gritam, o que é muito triste.

Quando foi introduzida a concertina?

Acho que foi no século XIX. Não tem nada a ver connosco, nós tínhamos cordofones, tambores, pífaros etc., isso é que eram os nossos instrumentos. Embora seja criticável pelas entidades de referência, a minha opinião é que é preferível os grupos usarem o acordeão, porque conseguimos tonalidades “naturais” para o canto. O gritar dos ranchos folclóricos afasta qualquer pessoa que gosta de música e de canto, mas há grupos que cultivam isso e até pensam que estão certos.

A questão da autenticidade da tradição está muito presente no mundo do folclore. Qual é a sua opinião sobre isso?

Há muita ignorância… No século XXI, não há grupos “autênticos”, nós não somos os nossos antepassados, os nossos corpos, a nossa vida nada tem de igual. Mas saibamos também que a UNESCO aceita o autêntico, o estilizado e o elaborado. São os três estilos do movimento dentro da cultura tradicional definidos pela UNESCO.

Mas como definiria o autêntico?

Normalmente o autêntico tem por base aquilo que é da tradição, aquilo que foi recolhido, escrito ou descrito e chegou até nós. Mas temos de pensar nisso muito bem, pois é autêntico até que ponto? Se nós queremos autêntico puro e duro, não podemos ir para cima de um palco, num palco é uma representação. Não podemos ter microfones, porque são uma deturpação da sonoridade natural, etc.

Concorda com isso, faz algum sentido?

Não, isso não faz sentido no século XXI! Pensar na autenticidade a 100% é fazer de nós peças museológicas. E um grupo de folclore faz atividades para um público, que tem de cativar, se não, deixa de lado uma das suas obrigações que é a divulgação. Em Portugal a Federação [Portuguesa de Folclore] tem defendido essa autenticidade nomeando “técnicos” para dar pareceres sobre se as coisas estão a ser bem ou mal feitas, geralmente Diretores de Grupos a dar pareceres sobre outros grupos, o que não é correto.

Como vê o papel da Federação Portuguesa de Folclore?

Tem algum mérito, mas parte logo de pressupostos errados. Não são os “técnicos” que têm que dizer o que cada grupo deve fazer, são as pessoas localmente que definem isso. Os grupos têm que perceber o que querem fazer, o que era a usança da terra ou não.

Naturalmente, adaptado aos tempos de hoje. O folar, por exemplo. No meu tempo de jovem, davam-se aos afilhados e colocavam-se nos andores para os festejos. O folar começou por ser de pão de trigo. Nos tempos de hoje ninguém queria comer simplesmente pão, então há cerca de 50 anos começou a ser feito com massa diferente, tipo massa doce, e as pessoas gostam. Lá está, no Grupo de Areosa mantivemos a tradição de oferecer folares, mas adaptamos aos tempos de hoje, e damos folares a quem nos convida.

Então será muito importante que todos os grupos façam as pesquisas das tradições das respetivas terras.

Claro que têm que fazer, se não houver pesquisas não pode surgir um novo grupo. Ou então, que façam uma coisa totalmente nova, e aí voltamos às categorias da UNESCO: o autêntico, o elaborado e o estilizado. E cinquenta anos depois a UNESCO já aceita como da tradição o trabalho desse grupo.

Ou seja, não faz muito sentido haver um organismo nacional cuja função seja supervisionar os diferentes grupos.

Eu sou um crítico do modelo existente em Portugal. O que devia haver eram federações regionais, mais alargadas, ou mais fechadas, consoante os grupos se entendessem. Sei que isso também é complicado, que os grupos vizinhos se entendam. Nós não sabemos cultivar o grande associativismo, como acontece noutros países.

Falta–nos isso. Essas federações regionais poderiam fazer uma confederação nacional, que já não seria feita pelos diretores dos grupos. Os diretores têm de defender a sua agenda, o seu Rancho, o que acho que até é correto. Mas, e os outros? Como os vão validar no âmbito da FFP? Eu respeito muito a tradição, mas nós temos que saber utilizar isso de uma forma que tenha interesse para o futuro. Uma delas é para o turismo, outra é para incrementar o fenómeno cultural. Não é por acaso que o traje à vianesa é hoje uma peça certificada, tem interesse internacional. No entanto, não faz sentido que em Trás-os-Montes se usem os trajes de Viana, só porque são mais bonitos e isso já acontece em algumas regiões. O importante é que cada grupo seja capaz de desenvolver a sua própria identidade.

Como se pode ser fiel à tradição e ao mesmo tempo inovar para as gerações mais jovens?

Como é evidente, o traje não é uma farda. As danças também não têm balizas. É o bom senso. A tradição implica aceitação coletiva. Nenhuma dança é de criação coletiva, houve alguém que a inventou, mas implica aceitação coletiva. Noventa por cento dos espetáculos de folclore que vou não gosto, acho que não têm interesse. Foram mal desenhados e as novas gerações que têm acesso a mais informação, não os aceitam.

O futuro está nas novas gerações, saibamos nós criar ambiente dentro dos grupos para que estes adiram à Cultura Tradicional e com isso se mantenha essa “chama” por mais uns largos anos.

Porquê? Não tem interesse enquanto espetáculo ou não tem a ver com a tradição?

É de tal maneira uma amálgama que não tem nada a ver com a tradição. Ver 70 pessoas em palco, como eu já vi, não faz sentido. Cinquenta por cento dessa gente não tem qualquer função em palco. Entraram para cima do palco e não fizeram nada. Não tem interesse nenhum. Muitas vezes não se nota uma coreografia por excesso de pessoas, não há cultura do espetáculo.

A ideia que eu tenho é que tem havido uma certa vitalidade destes grupos nos últimos tempos.

Depende de cada terra. As autarquias, a grande maioria delas, tem investido muito no sentido de valorizar os seus, o que tem sido ótimo. Também é preciso haver agentes dinamizadores, como escolas de música, grupos musicais, etc. Naturalmente que os ranchos folclóricos surgem, muitas vezes, devido à necessidade de promoção do território.

Mas há gente nova envolvida nestes grupos?

Sim e isso é que é interessante: a gente nova só se envolve se lhes for permitido que tenham alguma influência. Eu ainda há pouco tempo assisti a um espetáculo que quem está por trás daquilo é um ensaiador/diretor à moda antiga, com disciplina férrea. As danças e os trajes eram irrepreensíveis, mas eram só velhos e velhas. Tive depois oportunidade de falar com ele e perguntei: como vai transmitir isto às novas gerações? E ele respondeu: “eu acabo e isto acabou, não admito que se faça qualquer alteração”. Fiquei desiludido.

Há muita coisa a fazer para integrar os jovens: ir às escolas, fazer ensaios para jovens, independentemente de pertencerem ao grupo ou não, fazer cursos de dança onde as pessoas vão dançar tanto as modas alentejanas como as da Galiza, do Minho, dos países do Leste, entre outras. Ainda este ano fizemos uma sessão dessas no Casino de Afife e houve pessoas que vieram de vários lados, fizeram muitos quilómetros para estar aqui. Há pessoas que querem simplesmente dançar Viras, Chulas, etc. sem precisarem de palcos. Dançar é um ato de socialização, mas também é um exercício físico, ajuda ao bem-estar físico e psicológico das pessoas. E, depois, em alguns casos, há a sedução, quantos namoros existem que nasceram nos grupos! Olhe, eu sou um caso, há cinquenta e tal anos.

E como se diferencia o Grupo Etnográfico da Areosa?

Nós tivemos uma pessoa cá na terra, o médico António Sousa Gomes, que criou o grupo de Santa Marta de Portuzelo. Foi este senhor (para mim o maior folclorista de Viana) que criou o estereótipo de Rancho: bandeira à frente, com muitas fitas, que hoje é uma coisa ridícula. Tem muito a ver com a Igreja, a idade média, as procissões do Espírito Santo, do Corpo de Deus… nós estamos muito influenciados pelo catolicismo. As noivas à frente, com os seus véus brancos. Muito ouro, começou a cultivar-se muito ouro, que é uma parvoíce, porque não existia. A grande maioria das pessoas era pobre, só tinham um fato para as cerimónias da vida.

Ele, Sousa Gomes pelo sucesso que teve, levou a que todos os grupos imitassem Santa Marta de Portuzelo, poucos tiveram a coragem de não o imitar nas danças, nas músicas, nos trajes.
Eu tive a sorte de ser teimoso e não os querer seguir como modelo. Tive o conselho de quem considerava serem os mais importantes etnógrafos daqui da região, o que para mim foi muito bom. E hoje quem quer perceber o fenómeno folclórico de Viana tem de passar por Areosa, pois desde sempre tivemos vontade de fazer diferente.

Algo muito importante que nos diferencia também é a oportunidade que damos aos mais jovens membros do Grupo de também eles participarem das decisões, especialmente quando têm conhecimentos para tal. Falo, por exemplo, ao nível dos conhecimentos musicais (música, canto) ou até da dança. Os grupos só têm a ganhar quando os mais velhos aprendem também com os mais jovens e não apenas o contrário, porque muitos dos mais jovens tiveram formação académica na área e podem ajudar a elevar a qualidade das apresentações.

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